sábado, 15 de novembro de 2008

IHU ENTREVISTA.OS MOVIMENTOS SOCIAIS NO BRASIL: NOVOS AUTORES SOCIAIS?

O movimento de multidões sempre assusta os bem postados na sociedade. E o que assistimos, no Brasil e no mundo, é o movimento de multidões que questionam as instituições, como, entre outras, os partidos, os sindicatos, o Estado, as igrejas. Na Europa, este final de semana estivo foi marcado pela exuberante manifestação por uma outra globalização em Larzac, no sul da França. Todas as estimativas de participantes foram superadas. A tal ponto que o acesso ao local teve que ser fechado, por motivos de higiene e segurança. Mais de 200 mil pessoas participaram do evento que prepara a sua intervenção no encontro da Organização Mundial do Comércio – OMC – a ser realizado em Cancún, México, de 10 a 14 de setembro de 2003. Isso somente para citar um exemplo. No Brasil, acaba de ser articulada uma coordenação nacional dos movimentos sociais. Os sem-teto e os sem-terra diariamente ocupam grandes espaços da mídia nacional e internacional. Análises assustadoras vão aparecendo para anunciar o caos. ‘Baderna’ é uma palavra que se faz ouvir aqui e acolá. A comparação com o início dos anos 1960 e que terminaram no malfadado golpe militar de 1964, cujos 40 anos serão analisados num Seminário Internacional que o IHU, juntamente com vários PPGs da Unisinos, está organizando, voltam à ribalta. O boletim do IHU desta semana traz para o debate acadêmico a discussão dos Movimentos Sociais. Entrevistamos a Profª. Drª. Maria da Glória Gohn, uma das maiores pesquisadoras dos movimentos sociais, o Dr. Plínio de Arruda Sampaio, deputado constituinte, e atualmente vivamente interessado na articulação de uma coordenação dos movimentos sociais brasileiros e Alfredo Gonçalves, assessor nacional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB – para assuntos do Setor Pastoral Social, que articula as pastorais sociais, como a Comissão Pastoral da Terra – CPT, a Comissão Pastoral Operário –CPO, entre outras. Na mesma linha da matéria de capa, apresentamos o livro de Alberto Melucci, grande especialista em movimentos sociais, internacionalmente reconhecido e cujo livro, traduzido para o português, é apresentado pelo Prof. Dr. José Luiz Bica de Mélo. Dentre os movimentos sociais brasileiros, um dos que levanta maior discussão e debate, especialmente no Rio Grande do Sul, tendo em vista a marcha de agricultores rurais sem-terra e de fazendeiros, é o movimento pela reforma agrária. Três colegas da Unisinos discutem o tema, a partir de um artigo de Fábio K. Comparato e de dois artigos de Rubens Ricupero, reproduzidos nos números anteriores do IHU On-Line. Complementa a reflexão sobre o tema da emergência dos movimentos sociais, a entrevista com a Profª. Drª. Edla Eggert sobre o movimento das mulheres pomeranas. Este será o tema do próximo IHU Idéias. Enfim, como entender o Mundo e, especialmente, o Brasil, hoje, sem compreender a novidade dos novos atores sociais que são os movimentos? O boletim desta semana quer colaborar neste debate. E o fazemos na semana em que iniciamos a segunda etapa do Ciclo de Estudos sobre o Brasil. Entender o Brasil, hoje, é a nossa paixão. O tema de capa deste boletim e o estudo dos clássicos que se debruçaram sobre o Brasil, como Caio Prado Júnior, são uma pequena manifestação do desejo de contribuir para construir uma universidade que seja, cada vez mais, uma importante força social na vida nacional. Uma boa leitura e uma ótima semana para todos!

“Não são apenas os ‘sem’ que protestam, os ‘com’ estão ameaçados”
Entrevista com Maria da Glória Gohn


A partir da temática dos movimentos sociais, matéria de capa desta edição, IHU On-Line conversou com a Profª. Drª. Maria da Glória Gohn, professora da Unicamp. A professora Maria da Glória é mestre em Sociologia, doutora em Ciência Política pela USP, com a tese intitulada “Participação Popular e Estado - O Movimento de Luta por Creches em São Paulo” e pós-doutora em Sociologia na New School University, Nova Yor. É autora de vários livros, entre os quais destacamos: Movimentos Sociais e Educação[1]. São Paulo: Cortez Editora, 6ª edição, 2002; Teorias dos Movimentos Sociais. São Paulo: Edições Loyola, 2002; História dos Movimentos e Lutas Sociais. São Paulo: Loyola, 2001; Mídia, Terceiro Setor e MST. Petrópolis: Vozes, 2000; e Sem Terra, ONGs e Cidadania. São Paulo: Cortez, 2000.Ela acaba de publicar o livro organizado por ela, Movimentos Sociais no Início do Século XXI. Antigos e novos autores sociais, Petrópolis: Vozes, 2003.

IHU On-Line- Em que sentido se pode falar de crise dos Movimentos Sociais nos últimos anos? Que saldos positivos e negativos resultaram dessa crise?
Maria da Glória Gohn- Creio que é interessante voltarmos um pouco na História e dividirmos a questão em três momentos: de 1990-95, de 95 a 2000 e do início deste novo século até os dias atuais. Houve crise nos movimentos sociais populares urbanos, nos primeiros cinco anos dos anos 90, no sentido de que eles tiveram reduzida parte do poder de pressão direta que haviam conquistado nos anos 80. Isso se deu em função de vários fatos novos, que explicam as alterações que passaram a ocorrer em suas dinâmicas cotidianas. É bom lembrar que o país saía de uma etapa de conquista de novos direitos constitucionais, a maioria dos quais precisava ser regulamentada. A volta das eleições diretas em todos os níveis governamentais, também alterou a dinâmica das lutas sociais, porque se tratava agora de democratizar os espaços públicos estatais. A necessidade de atuação, no plano institucional e governamental, aumentou, não apenas nos locais que passaram a ser administrados por governos populares, mas aumentou fundamentalmente, no plano federal, locus de debate e encaminhamento das conquistas obtidas na Carta de 88, para que viessem a ser implantadas. E todos nós sabemos que o governo federal, naquele mesmo período, passou a implementar ou a aprofundar, em todos os níveis, as políticas neoliberais. Para complicar mais ainda o cenário, essas políticas geraram desemprego, aumento da pobreza e da violência, urbana e rural. Houve até quem preconizasse, naqueles anos, que a fase das mobilizações nas ruas dos movimentos estavam ultrapassadas, correspondiam a uma etapa já superada, pois o regime militar havia caído e se tratava agora de atuar apenas no plano institucional. A educação popular e o trabalho de base junto a grupos populares também passaram a receber críticas. Seria algo também já superado, justificável apenas na década anterior. Naquele momento, a página teria que ser virada (interpretação essa com a qual eu nunca concordei, embora concordasse com mudanças que atualizassem o trabalho de base em função da nova conjuntura do país e do mundo). Conseqüentemente, a visibilidade externa dos movimentos populares urbanos, na mídia e na sociedade como um todo, refluiu naquele período. Ao mesmo tempo um outro sujeito sociopolítico advindo dos movimentos sociais populares do campo ganhava força: os sem-terra, especialmente o MST. Portanto, quando se falava de "crise dos movimentos sociais urbanos", nos primeiros anos da década de 90, não significava o desaparecimento deles, e nem o seu enfraquecimento como atores sociopolíticos relevantes, e sim uma rearticulação, interna e externa, de seu papel na sociedade.

IHU On-Line- Que outras conseqüências aparecem a partir das transformações políticas do início da década 90?
Maria da Glória Gohn- As mudanças na conjuntura política levaram também à emergência, ou ao fortalecimento, de outros atores sociais relevantes na sociedade civil, tais como as ONGs e outras entidades do Terceiro Setor. Os movimentos populares passaram a ter outros aliados, e/ou competidores, na disputa entre os grupos organizados para demandar as necessidades sociais ao poder público, ou organizar trabalhos coletivos para resolver estas demandas entre os próprios necessitados. Para finalizar as observações sobre o cenário dos movimentos populares, nos primeiros anos da década de 90, não podemos deixar de registrar que houve tensões entre as lideranças na condução dos movimentos urbanos, principalmente em relação a questões como: institucionalização, participação ou não em conselhos propostos ou criados pelo poder público, participação em programas governamentais, etc. O fato de várias lideranças ascenderem a cargos no poder público, ou ao parlamento, também teve alguma influência na nova dinâmica dos movimentos. Este novo cenário gerou a necessidade de articulações e a maioria dos movimentos, rurais ou urbanos, passaram a atuar em redes e a construir agendas anuais de congressos e manifestações públicas, como o Grito dos Excluídos, por exemplo. Em suma, no interior dos movimentos, expressava-se uma crise maior, que não era deles, mas refletia-se no seu cotidiano, que o país atravessava: o desmonte de políticas sociais pelas políticas neoliberais e sua substituição por outras políticas, em parceria com ONGs e outras entidades do Terceiro Setor; a fragmentação da sociedade pela desorganização ou flexibilização do mercado de trabalho, levando ao crescimento do setor informal; a defasagem na qualificação do mercado de trabalho face à era da tecnologia, comunicações e informação, levando a novas exigências no campo da educação, formal e não-formal, face ao mundo globalizado, etc. Portanto, a crise expressava os novos arranjos na busca de renovação, de adaptação à nova conjuntura e às mudanças no mundo do trabalho, de reposicionamento frente às novas políticas públicas.

IHU On-Line – Foram muito contrastantes as mudanças no segundo período da década de 90?
Maria da Glória Gohn - Na segunda metade dos anos 90, novos ingredientes foram acrescentados, alterando ainda mais a dinâmica dos movimentos sociais em geral, e dos populares em particular. Começo citando as crises econômicas internas, os movimentos populares e ONGs cidadãs, que os levaram a repensar seus planos, planejamentos de ação, estratégias e forma de atuar, elaboração de planejamentos estratégicos, etc. Algumas entidades de apoio aos movimentos até fecharam suas portas, outras fizeram enxugamentos em termos de regiões de atuação, fundiram-se com outras ou ainda deslocaram suas áreas de atuação para setores específicos, dentro do leque dos programas sociais institucionalizados, governamentais ou de apoio advindo da cooperação internacional. Novas pautas foram introduzidas, tais como a de se trabalhar com os excluídos sobre questões de gênero, etnia, idades, etc. As dificuldades de apoios para manter estruturas mínimas, ou a necessidade de reorientar suas ações em função de novas diretrizes e regras da cooperação internacional, não deixavam sobra de tempo para as lideranças se articularem com a população. Os novos tempos, de desemprego e aumento da violência urbana, assim como o crescimento de redes de poder paralelos nas regiões pobres, ligados ao narcotráfico de drogas e outros, também colaboraram, e muito, para desmotivar a população necessitada para participar de reuniões ou outras atividades dos movimentos.

IHU On-Line – De que forma se deu a desmotivação para a organização dos movimentos sociais?
Maria da Glória Gohn - A nova política de distribuição e gestão dos fundos públicos, em parceria com a sociedade organizada, focalizados, não em áreas sociais (como moradia, saúde, educação, etc.), mas em projetos pontualizados, como crianças, jovens, mulheres, etc., contribuiu para desorganizar as antigas formas de os movimentos fazerem suas demandas e reivindicações. A palavra de ordem destes projetos e programas passou a ser: ser propositivo, e não apenas reivindicativo; ser ativo, e não apenas um passivo reivindicante. Muitos movimentos se transformaram em ONGs ou se incorporaram às ONGs que já os apoiavam. A atuação por projetos exige resultados e tem prazos. Criou-se uma nova gramática onde mobilizar deixou de ser para o desenvolvimento de uma consciência crítica ou para protestar nas ruas. Mobilizar passou a ser sinônimo de arregimentar e organizar a população para participar de programas e projetos sociais, a maioria dos quais já vinha totalmente pronta e atendia a pequenas parcelas da população. O militante foi se transformando no ativista organizador das clientelas usuárias dos serviços sociais. Como todo ciclo, ele também se fecha e se esgota. As políticas neoliberais passaram a desaguar, ao final da década de 90, em termos de sua legitimidade inicial, junto às camadas médias e parte das elites. O que era "ser moderno" passou a ser visto como responsável pelo atraso. O aumento da pobreza, o desemprego e a violência urbana, transferiram a questão social, que nos anos 90 se apresentava com maior crueza no campo, para as cidades (não que ela tenha se resolvido no campo. Apenas agudizou-se mais na cidade).

IHU On-Line – E como se dá a situação no contexto do período atual?
Maria da Glória Gohn - O início do novo milênio marca a retomada das mobilizações populares nas ruas, o desencanto das camadas médias e das elites com os rumos do país. Isso tudo levou à eleição de Lula. Abriu-se a possibilidade de nova página na História do Brasil, possibilidade esta que, após 7 meses de governo, também começa a se frustar. Embora logo no início tenha-se tido uma inovação inédita na pauta do governo brasileiro, ao se priorizar o social, com o anúncio do programa "Fome Zero", e não de um extenso programa econômico, a não-efetivação de ações concretas nesta direção, a não prioridade para a geração de empregos e políticas de retomada do crescimento da economia do país, os rumos e as opções econômicas que passaram a ser feitas, a retirada de direitos sociais de servidores públicos, as negociações e concessões aos mais poderosos, tudo isso nos explica também a retomada das mobilizações nas ruas e as ações de ocupações massivas. Oxalá tudo isso se altere!

IHU On-Line- Qual é o perfil dos movimentos sociais atuais que tendem a ser massivos? Quais os mais fortes na América Latina?
Maria da Glória Gohn- São os mesmos que estão pautando as lutas sociais no Brasil atual e na América Latina: por terra, moradia e emprego. Mas já não são apenas os "sem" que se organizam e protestam. Os "com" estão ameaçados e estão gerando grandes mobilizações, a exemplo dos servidores públicos e dos trabalhadores sob ameaça de demissões. Há outros movimentos que não adquirem o formato massivo permanente mas que têm crescido muito: atos de protestos, vigílias e caminhadas contra a violência urbana, contra os atentados à vida do cidadão comum, contra civis - de qualquer idade, cor ou classe social. A consciência da necessidade de movimentos pela paz no cotidiano, contra as guerras e os atos terroristas, está se germinando.

IHU On-Line- Como deve ser o diálogo entre os movimentos sociais e o Estado?
Maria da Glória Gohn- O diálogo é fundamental, condição básica para se construir novas formas de fazer política, para democratizar os espaços públicos, para "humanizar" o poder, para construir o estado democrático de direito. Mas não pode ser um falso diálogo, algo imposto de cima para baixo, como verdades inevitáveis para que cidadãos ameaçados ou desqualificados apenas tomem ciência do que já está decidido. Ouvir é uma qualidade tão ou mais importante do que falar.

IHU On-Line- Concretamente, no Brasil, como a Srª. está vendo o diálogo entre o Governo Lula e os movimentos?
Maria da Glória Gohn- Sinceramente, eu não estou vendo o diálogo que citam acima. O que tenho visto nestes últimos dias são conflitos entre a polícia e o movimento dos servidores públicos, porque estes protestam contra a retirada de seus direitos; tensões e conflitos entre a polícia e os sem-terra, que continuam a ser criminalizados e até condenados à prisão; ações de despejo contra os sem-teto e um jogo de empurra-empurra sobre quem deve atendê-los, etc. Ao crescimento da tensão social o que se observa, até o momento, como resposta, é o chamamento à ordem via a eliminação do conflito e da tensão, e não a sua negociação. Certamente que está havendo maior transparência nas ações do poder público, assim como a mídia está dando visibilidade maior aos conflitos, o que não ocorria tanto antes. Há outras formas de visibilidade, ainda não apropriadas pela maioria da população, pelo não acesso ou pela impossibilidade de acompanhar devido aos horários que se realizam, tais como as transmissões pela TV Câmara e TV do Senado. Certamente que muito contribuem para formar, ou transformar, a opinião de muitos cidadãos sobre qual a diferença entre o que é o discurso - onde quer que ele ocorra, e as ações efetivas na hora do agir.

IHU On-Line- Qual foi o principal aporte de Alberto Melucci para compreender os movimentos sociais?
Maria da Glória Gohn- O de ter chamado a atenção, nos anos 80, para a importância e força da construção da identidade nos movimentos sociais e o fato de nos remeter, em seus trabalhos nos anos 90, a uma concepção de movimento social que o apreende de uma forma mais ampla na sociedade: pelos valores que eles criam e pelas novas práticas que consolidam, o que nos possibilitou entender melhor seus significados, e não se deter apenas nas formas aparentes das manifestações coletivas.

IHU On-Line - Como vê atualmente movimentos como os Sem-Terra ou Sem-Teto? Que ponderações positivas e críticas faria a respeito?
Maria da Glória Gohn - São os dois movimentos sociais mais articulados na atualidade, no Brasil. Dizem respeito a direitos sociais básicos, elementares, relativos à própria condição humana: o abrigo e a comida. Os sem-terra construíram uma trajetória que reúne experiência acumulada, um saber social, assim como produzem reflexão e conhecimento em suas escolas de formação - a partir da reflexão sobre suas práticas e a dos outros. Os sem-teto são como um termômetro: quando eles entram em cena, a situação está grave. Eles já tiveram papel central nas lutas populares urbanas nos anos 80 (há vários estudos e registros a este respeito, entre outros, cito meu próprio livro: Movimentos Sociais e Luta pela Moradia (Loyola, 1991). Nos anos 90, eles construíram várias frentes, de caráter mais institucional, participando de programas e mutirões, articulando-se em Fóruns Nacionais, ou lutando no plano do parlamento, via suas assessorias, resultando dessas lutas várias conquistas, como o Estatuto da Cidade. Ao final do século que se encerrou, e início deste, com o agravamento da pobreza e da exclusão social nas cidades, fortaleceu-se, no movimento pela moradia popular, as alas de moradores nas ruas, nos cortiços, nas moradias precárias de aluguel, etc. O movimento pela moradia reaparece em cena com um protagonismo novo, aprendido com o MST: as ocupações de prédios (certamente que essas práticas já haviam ocorrido, mas não na escala e com o grau de organização atual) ou de áreas urbanas estratégicas, como a ocupação na Avenida Anchieta, de um terreno de propriedade da Wolkswagen. A conjuntura política e econômica atual fez com que a mídia voltasse a dar visibilidade às suas ações. Projetos de administrações municipais de revitalização de áreas centrais da cidade, com apoio de grandes grupos financeiros, também criaram a oportunidade para a atenção para dezenas de prédios fantasmas, abandonados, muitos deles nas mesmas ruas que aquelas populações perambulam diariamente. Com essas ações, sem-terra e sem-teto estão pressionando para a mudança da agenda político-econômica do governo no sentido de atendimento ao social; ações que construam a Reforma Urbana e a Reforma Agrária no país, geração de emprego e renda aos excluídos. Tudo indica que a História lhes ensinou: sem pressão, os avanços não acontecem espontaneamente. Apesar de se terem construído canais institucionais para a participação popular, ao longo de toda a década de 90, parece que eles não confiam muito nestes canais, além da necessidade de esses canais serem democratizados para o acesso aos mais pobres. Os gestores públicos precisam também ter a sensibilidade para o fato de que, os raros programas existentes na área da moradia, além de escassos, não atingem essa população que está participando das ocupações, pois exigem níveis de renda que eles não possuem (por exemplo, acima de 2/3 salários mínimos).

“A única forma de mudar o país é fortalecer os movimentos sociais”
Entrevista com Alfredo Gonçalves, assessor da CNBB


A postura e a participação da Igreja Católica nos movimentos sociais são discutidas na entrevista a seguir. IHU On-Line conversou por telefone com o padre Alfredo Gonçalves, assessor nacional do Setor Pastoral Social da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Alfredo Gonçalves, padre carlista, português, poeta, foi durante muitos anos presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes – SPM – com sede em São Paulo. Atualmente reside em Brasília.

IHU On-Line – De que forma o Sr. vê a associação dos Movimentos Sociais no Brasil? Quais suas expectativas?
Alfredo Gonçalves – Em termos nacionais, nós estamos assistindo recentemente a uma primavera dos movimentos sociais. Há um revigoramento das mobilizações, dos movimentos, que tem repercutido no Fórum Social Mundial. Aqui no Brasil, isso se vê em alguns movimentos com mais força do que em outros. Há muitos movimentos hoje em todo o mundo na contramão do processo de globalização. Há movimentos cada vez mais fortes que tentam enfrentar esse processo de globalização, de exclusão do terceiro mundo. Entre eles eu poderia citar os movimentos ambientalistas, os movimentos ligados aos camponeses, os movimentos de jovens, de mulheres... Estamos assistindo a um grande reavivamento dos movimentos sociais em todo o mundo. O Fórum Social Mundial tem sido uma caixa de ressonância que mostra a organização dos movimentos populares. Essa associação dos movimentos sociais é o caminho. Cada vez mais sentimos que um só movimento, uma só pastoral, uma só associação tem pouca força dentro dos mecanismos e dos meios com que o neoliberalismo se organiza. Sente-se a necessidade de somar forças e, respeitando a pluralidade dos movimentos, somar bandeiras na luta contra a exclusão social. Essa articulação é um instrumento muito bom. Através dela será possível pensar muito mais o nacional, o global, e não somente o local, o regional. É preciso lutar em termos regionais, mas pensar em termos nacionais e globais também. É aquela história da construção de um projeto nacional, de uma sociedade justa e fraterna, levando em conta as necessidades populares. Isso é mais importante.

IHU On-Line – Como se dá a participação concreta da Igreja Católica nessa articulação? Há algum representante?
Alfredo Gonçalves – A Igreja Católica sempre, através do Setor Pastoral Social da CNBB, vem participando dessas lutas populares, apoiando-as. Eu poderia lembrar o tempo do regime militar, quando a Igreja deu abrigo a uma série de pessoas e de instituições que lutavam na oposição. Mais recentemente, na década de 90, as semanas sociais que foram promovidas pela Igreja Católica e outras Igrejas, os plebiscitos da dívida externa, da Alca, o Grito dos Excluídos, etc. Cada vez mais, a presença da Igreja tem feito uma parceria muito ampla com os movimentos sociais e com essa articulação. A associação entre os movimentos e a Igreja Católica passa muito também pelas pastorais sociais. Cada pastoral social e suas bases realizam muitas atividades em parceria com os movimentos sociais, com outras articulações, com os sindicatos, com forças sindicais e estudantis. Trabalhamos aqui na CNBB com 12 pastorais. Cada uma delas, pelo Brasil, está ligada concretamente a uma série de articulações com os movimentos sociais. Além do Setor Pastoral Social da CNBB estar vinculado à articulação, cada pastoral dá apoio concreto às lutas populares. Desde o plebiscito das semanas sociais, existe um conjunto de entidades, entre elas a CUT, a Central dos Movimentos Populares (CMP), o MST, que trabalham juntas numa série de articulações relacionadas à dívida externa, à Alca, e assim por diante. Já temos representantes da Igreja Católica nessa articulação. Em São Paulo, nós temos várias pessoas que acompanham essa iniciativa. Nós, do Setor Pastoral Social, estamos acompanhando igualmente. O problema é que a CNBB e o Setor Pastoral Social estão numa fase de transição, mudando a direção, mudando o estatuto. Por enquanto, é difícil dar o nome da pessoa. Ainda estamos vendo quem vai ficar no Setor Pastoral Social. Mas a Igreja está presente nessa articulação, sim.

IHU On-Line – Quais seriam as urgências das pastorais sociais hoje? Dentre os problemas sociais existentes, de quais se prioriza a solução?
Alfredo Gonçalves – Se fizermos uma pesquisa mais ampla, o desemprego é uma bandeira muito forte. Grande parte das pastorais sociais, de alguma forma, lida com o desemprego. A pastoral operária e as demais acabam sofrendo conseqüências do desemprego. Outra prioridade tem sido a luta pela terra pelos movimentos do campo, especialmente pelo MST, apoiada pela Comissão Pastoral da Terra e por outras pastorais. Temos uma grande articulação das pastorais sociais no Nordeste, no semi-árido brasileiro, com a questão da água, com a luta pela água, especialmente na construção de cisternas, junto com a Cáritas. Há outra prioridade, depois, com as populações de rua, de lixões, que chamamos de excluídos entre os excluídos. Aí entra a Pastoral da Rua, do Menor, a Pastoral Carcerária, da Mulher Marginalizada, das Prostitutas. Há uma série de pastorais voltadas para esses setores mais excluídos da população. Nisso tudo, uma grande curiosidade tem sido o Grito dos Excluídos por ocasião do 7 de setembro. É o momento em que levamos à rua o grito sufocado dos setores cada vez mais excluídos da população.

IHU On-Line – Como o Sr. vê que o Governo Federal está respondendo a essas prioridades?
Alfredo Gonçalves - Por parte do Governo Lula, há uma vontade política de atender às reivindicações populares. Essa vontade permanece de pé. As forças retrógradas desse país são muito reacionárias, têm uma estrutura histórica muito forte de concentração de terra, de renda, de riqueza. A margem de manobra do governo é muito pequena. Eu diria até que o governo ganhou o executivo, mas não ganhou o Estado. É muito difícil levar adiante as reivindicações populares com forças tão retrógradas, como o Judiciário, o Congresso, a Bancada da UDR e outras. É difícil aplicar ou implementar mudanças e políticas públicas contra essas forças. Outro problema sério é a vinculação do governo com o mercado financeiro internacional, via FMI, Banco Mundial, etc. A necessidade de recursos para pagar juros da dívida externa, serviços e rolagem da dívida, acaba sangrando o país. Esses recursos acabam fazendo falta na saúde, na educação, na reforma agrária e nas políticas públicas, em geral. Eu vejo que o governo, de certa forma, tem as mãos bastante amarradas, por conta do mercado financeiro, das alianças com as forças mais retrógradas. Para mudar, ele precisa de muita articulação popular. A única maneira de ajudar o Presidente Lula a mudar esse país é fortalecendo os movimentos populares, colocando as populações na rua, organizando as bases, e batendo nas portas dos poderes públicos. Se não houver mobilização popular, é muito difícil pensar em mudanças estruturais.

IHU On-Line – De que forma se caracteriza o movimento social no Brasil atualmente?
Alfredo Gonçalves – O Movimento Social teve uma grande força no final dos anos 70 e começo dos anos 80. Foi a época do sindicalismo combativo, das pastorais sociais e das CEBs, dos movimentos estudantis, tudo muito forte. Eu senti um certo esfriamento a partir de meados da década de 80. Mas diria que, nos meados da década de 90, assistimos a essa primavera, de que já falei. Há uma série de rearticulações do movimento social, de certa forma qualitativamente superiores. É um movimento social mais integrado na mobilização internacional. Ao mesmo tempo em que se olha o particular, a luta concreta local, também se olha a articulação com os movimentos mundiais. Existem milhares de iniciativas simples e populares no sentido de apontar uma nova direção na economia solidária, por exemplo, nas associações, nas padarias comunitárias, que dão uma consistência bastante grande aos movimentos sociais. Essa preocupação de uma articulação maior em nível nacional e internacional confere uma nova atualidade aos movimentos sociais.

IHU On-Line – Quais seriam os maiores riscos que podem correr os grandes movimentos sociais, como o MST, por exemplo?
Alfredo Gonçalves – O principal risco é essa avalanche do capital financeiro, da Alca, do neoliberalismo, que ainda permanece como uma grande ameaça sobre o país. Essa política financeira tende a afastar pequenas iniciativas, como a agricultura familiar, a pequena e média empresa, as organizações populares. Outro risco é o desemprego em massa, que tende a debilitar bastante as forças populares, na medida em que as pessoas começam a lutar apenas pelo emprego. Outro seria as divisões internas e o esvaziamento do movimento, na medida em que o governo do PT acaba tendo várias lideranças. Mas o Movimento Social está bastante vigoroso, tem um potencial muito forte e tem condições de refazer essas lacunas e de seguir adiante. Eu vejo com bastante otimismo tudo isso, apesar dos riscos e da exclusão social forte. Se há riscos, há também uma grande potencialidade de fortalecer os movimentos para exigir que o governo Lula seja coerente como seu passado, com a sua história, com a sua memória de lutas.

A Sinergia dos Movimentos sociais
Entrevista com Plínio de Arruda Sampaio


O advogado, promotor público e ex-deputado federal constituinte pelo PT, Plínio de Arruda Sampaio, 73 anos, é um especialista na questão fundiária no Brasil. Antes de 1965, participou ativamente da construção do Partido Democrata Cristão – PDC. Depois foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores. Ele trabalhou durante 30 anos na FAO (órgão da ONU voltado para a agricultura e a alimentação). Plínio atualmente é diretor do jornal Correio da Cidadania, e integrante do Conselho de Segurança Alimentar, órgão ligado ao Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome. Atualmente participa ativamente na Coordenação Nacional dos Movimentos Sociais. Sobre o tema dos movimentos sociais, a esquerda e o governo Lula, Plínio de Arruda Sampaio responde algumas questões a IHU On-Line na entrevista a seguir.

IHU On-Line – Quando o Sr. ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores, imaginava que um dia ele chegaria ao poder da maneira como está acontecendo?
Plínio Sampaio - Apesar de não ser signatário do documento de fundação, participei dos primeiros passos do partido. A pedido do Lula, preparei a minuta do primeiro Estatuto do Partido. Essa minuta foi o texto base do Primeiro Encontro do PT. Em 1981, fui eleito para a Executiva Estadual de São Paulo e em 1982 concorri a deputado federal. Eu imaginava que o PT criasse uma espécie de contra-cultura para combater a cultura política tradicional. Creio que conseguimos alguns resultados importantes nesse campo. Contudo, nos últimos anos, começamos a fazer concessões à cultura política tradicional. Isto pode comprometer a nossa proposta.

IHU On-Line – Falando sobre reforma agrária, o Sr. comparou, em entrevista recente, a situação atual com a anterior ao golpe de 64. Poderia explicar as semelhanças?
Plínio Sampaio - Minha observação sobre 1964 , como de hábito, foi distorcida pela imprensa para servir aos seus propósitos. Comparei a “choradeira” e a campanha “terrorista” dos latifundiários de hoje com a dos latifundiários de 1964. Os argumentos são os mesmos para uma reforma agrária que obviamente não pode ser igual à de quarenta anos atrás.

IHU On-Line – Como o Sr. vê a nova articulação dos movimentos sociais?
Plínio Sampaio - A idéia central do esforço de movimentos sociais se resume em uma palavra: sinergia. Se nos juntarmos, a força do movimento social não será apenas a somatória da força de cada um dos movimentos que o integram. Será acrescentado um tanto, resultante da ação articulada dentro de uma estratégia comum.

IHU On-Line – Quais as suas expectativas em relação à nova Associação?
Plínio Sampaio - Um dos problemas da esquerda brasileira consiste em trabalhar em cima de ilusões. Atualmente, o poder convocatório dos movimentos sociais é pequeno. Porém, já consegue criar “fatos políticos”. No momento, isto é o que importa: criar fatos políticos que possam alterar a agenda política do país. Porém, ainda mais importante, é dar início a uma trajetória de longo prazo. Se perseverarmos nessa via, chegará o dia em que em vez de mobilizar centenas ou milhares, mobilizaremos milhões. Aí as coisas mudarão efetivamente de rumo.

IHU On-Line – O que está sendo previsto para o lançamento oficial da Associação, em setembro?Plínio Sampaio - Os movimentos populares mudaram a cara da Semana da Pátria: deixou de ser uma parada militar, voltada para o estímulo a um patriotismo vazio, para se converter em um tempo de grandes mobilizações populares, com vistas à denúncia dos grandes problemas econômicos, sociais e políticos da Nação. O Grito dos Excluídos tornou-se um símbolo desses protestos. Não estou completamente a par do calendário de setembro, mas sei que, neste ano, as denúncias da Alca e dos Transgênicos fazem parte dele

[1] A primeira edição deste livro é de 1991/1992. Como ele está na 6ª edição, muitos pensam que o dito naquela época, sobre a crise, se aplica hoje, o que não é verdade. Na próxima edição do livro, será colocado um adendo com as notas respondidas nesta entrevista. (Nota da autora)

IHU on line, São Leopoldo, 11 de agosto de 2003.

MELUCCI, Alberto. A invenção do presente: movimentos sociais nas sociedades complexas, Petrópolis: Vozes, 2001.

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